quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Uma criança, um vídeo e a ética de um país

Ontem começou a circular freneticamente nas redes sociais, o vídeo onde um menino aparece tendo um ataque de fúria, jogando longe livros, cadernos e cadeiras e onde alguns funcionários apenas observavam dizendo que não podiam segura-lo.
Pois bem.
Fiquei extremamente incomodada com a rapidez com que esse vídeo viralizou mas, principalmente com a quantidade de gente classificando a criança com os piores adjetivos possíveis, fazendo previsões nefastas a respeito de seu futuro, tratando a situação como se fosse apenas mais um garotinho mal educado que se comportou assim por falta de uma boa surra. Mas, pior do que isso foi ler comentários de professores, pedagogos e até outros profissionais, seguindo a mesma linha de raciocínio.
Quem lida com Educação sabe que a realidade nas escolas e nas salas de aula tem se tornado cada vez mais difícil. As crianças, muitas vezes frutos de famílias desajustadas e doentes, exigem cada vez mais conhecimento dos educadores para lidar com suas necessidades. Porém, mesmo diante dessa realidade existem erros que jamais podem ser cometidos. Gostaria de listar aqui, o que a meu ver foram as principais questões nesse caso.

1. Exposição de menor na mídia sem consentimento dos pais
O artigo 17 do Estatuto da Criança e do Adolescente deixa claro que a criança tem direito ao respeito, o que inclui a preservação da imagem e da identidade.
Se os professores queriam ter provas sobre sua atuação diante da atitude da criança, que gravassem o vídeo como demonstração de que a criança não teria sido agredida, mas este jamais, repito, JAMAIS poderia ter sido divulgado dessa forma. Afinal, qual foi o objetivo dessa divulgação?
Ao fazer essa divulgação colocaram a criança numa condição de vulnerabilidade muito maior do que se o menino tivesse sido fisicamente contido no momento de sua fúria.
Além disso, o artigo 18 diz que:

                                         É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.

A publicação desse vídeo foi degradante para essa criança que, além de ter que lidar com as questões que a fizeram ter esse tipo de atitude, agora precisa também lidar com a exposição e com o julgamento depreciativo de toda uma sociedade despreparada para lidar com tais circunstâncias.

2. "Não segura ele".
Em determinado momento do vídeo alguém diz: "não segura ele, não", provavelmente fazendo alusão ao fato de que se a criança for tocada poderá ser considerada agressão. Porém, no caso em questão, a criança descontrolada poderia e, deveria, ser contida.
O artigo 17 do ECA diz que a criança tem o direito a ser educada sem castigos físicos ou violência. tratamento cruel ou degradante.

Parágrafo único.  Para os fins desta Lei, considera-se:      (Incluído pela Lei nº 13.010, de 2014)
I - castigo físico: ação de natureza disciplinar ou punitiva aplicada com o uso da força física sobre a criança ou o adolescente que resulte em:      (Incluído pela Lei nº 13.010, de 2014)
a) sofrimento físico; ou       (Incluído pela Lei nº 13.010, de 2014)
II - tratamento cruel ou degradante: conduta ou forma cruel de tratamento em relação à criança ou ao adolescente que:       (Incluído pela Lei nº 13.010, de 2014)
a) humilhe; ou       (Incluído pela Lei nº 13.010, de 2014)
b) ameace gravemente; ou        (Incluído pela Lei nº 13.010, de 2014)
c) ridicularize.      

Conter uma criança em situação de risco para ela ou para outros não significa machuca-la, tortura-la, agredi-la ou degrada-la. Significa apenas impedir que ela possa colocar sua integridade física em risco ou aos demais presentes.
A falta de conhecimento das leis gera equívocos como esse. Se essa criança tivesse se machucado gravemente durante a cena exibida, os adultos poderiam ser igualmente processados, pois foram negligentes quanto a zelar pelo bem estar dessa criança que estava sob seus cuidados.

3. "Vou chamar seu pai." e "Alguém pode chamar a polícia?"
Os adultos envolvidos no caso demonstraram para a criança que não tinham qualquer tipo de autoridade sobre ela. Podemos ver pelo menos seis pessoas envolvidas e nenhuma delas demonstrou ter autoridade suficiente.
Ao dizerem que vão chamar o pai ou a polícia, estão dizendo indiretamente para a criança que são incompetentes para lidar com ela e, por isso, delegam a outros essa questão. Portanto, como esperar que uma criança respeite alguém que demonstra que é incapaz de ter autoridade?
E ainda: o que de tão grave a criança estava fazendo para que fosse necessário chamar a polícia?

4. A questão ética
De tudo que pude perceber nesse vídeo, sem sombra de dúvidas o que me causa mais espanto é a falta de ética de todos os profissionais envolvidos.
A formação profissional deve incluir também questões como ética e moral.
Eles poderiam ter lidado com a situação de muitas maneiras possíveis, poderiam até mesmo ter chamado o pai da criança ou a polícia, poderiam ter contido a criança ou te-la levado para um ambiente estéril, poderiam ter deixado ela destruir a sala inteira até que nada mais restasse para ser quebrado, mas , repito, jamais divulga-lo em uma rede social.

Aonde está a ética desses profissionais?
Colocar-se no lugar do outro também faz parte da convivência social. Quem, em sã consciência, gostaria de estar sendo exposto dessa maneira durante um ato de desequilíbrio emocional e, pior, sem ter condições de se defender? Quem gostaria de ver seu filho, sua filha ou algum parente exposto a uma situação humilhante e vexatória?
Ou será que tudo é relativo e o que vale para você não vale para mim?

Por fim, gostaria que refletíssemos a respeito de como tratamos nossas crianças. Todos os adultos que assistiram o vídeo e comentaram de forma depreciativa só tinham em mente a necessidade de "dar umas boas palmadas" ou tinham certeza de que a criança em questão era um marginal mirim, ou ainda que no futuro certamente seria um bandido, sem levar em consideração que, talvez, o grande problema dessa criança seja exatamente o excesso de boas palmadas; ou que ela possa ser uma criança com algum distúrbio psiquiatrico; ou que possa ser uma criança psicologicamente doente; ou ainda que, exatamente o que falta a essa criança é compreensão, afeto e segurança emocional.
Vivemos momentos complicados onde parece que julgar o próximo tem mais valor do que compreende-lo.
Todos que xingaram e julgaram essa criança estão cometendo atos de violência contra ela.
Quando uma criança é colocada numa situação de exposição sem limites e quando uma sociedade inteira acredita que essa criança é culpada por sua própria condição de fragilidade e vulnerabilidade e que, portanto, deve ser punida por isso, devemos pensar em quais são nossos reais valores e o que estamos construindo para a humanidade futura.